“Passou tanto tempo, noite que pari meu filho é sonho antigo. Corpo donde ele saiu já nem é mais o mesmo. Primeiro choro de meu Joaquim é gemido de vento no ouvido, longe, no vale onde não há memória. Se mo levaram sem rasto de noite e nunca mais o vi. Se calhar, sonhei com Ricardo e sonhei toda a minha vida até hoje em que mais não tenho feito do que procurar meu filho. Mas então também eu, Irene, sou coisa da minha cabeça. Também eu
Irene sou sonho que eu tenho. E não sei quem é a mulher sonhando com a mulher que eu acho que sou. Não sei quem é essa mulher que me sonha na cama quando, a meio da noite, enquanto ela sonha, pai branco lhe leva menino que ela teve.”
O filho de Irene desapareceu em Luanda numa madrugada de Fevereiro de 1974. A mãe roubada viaja de Luanda a Lisboa à sua procura. Quem procura Irene pelas ruas? Quem cuidará de Irene, enquanto Irene procura?
No ano em que comemoramos os 21 anos das Classes de Teatro do Teatrão, voltamos a participar no PANOS – Palcos Novos Palavras Novas, um projeto do Teatro Nacional D. Maria II, que encomenda anualmente peças originais para serem representadas por adolescentes. Usando Irene como ponto de partida, tentámos ver o mundo que nos rodeia de outras perspectivas. Complementámos a nossa pesquisa com livros, notícias, músicas, filmes e com todo esse material fomos desenhando as linhas que nos aproximam desta mulher. Depois de um ano de explorações, apresentamo-nos agora, pela primeira vez no palco, e partilhamos todo o trabalho levado a cabo.
“ (…) Eu, eu, palavra mais feia de todos os dicionários, palavra tão sozinha e triste que dá pena como mulher abandonada.”
Djaimilia Pereira de Almeida, em Irene
Irene trabalha nas limpezas; o seu ofício é perfumar a vida alheia. Irene é também uma mulher roubada, a quem foi negada a possibilidade de futuro. Foi há quase cinquenta anos que o seu filho Joaquim lhe foi levado do berço enquanto dormia e, desde essa madrugada, que vive obcecada pelo momento do seu reencontro. Privada de voz, decide então escrever a sua história, relato dos dias a caminho desse menino feito homem, que é Joaquim. A escrita é uma forma de expurgar os fantasmas que carrega e os capítulos que, agora, nos chegam são o seu legado – a prova da sua existência.
Irene fala-nos de esperança, da possibilidade de nos determos nas pequenas coisas, da força de nos agarrarmos aos outros, mesmo quando nos sentimos incompletos ou perdidos. É uma história sobre o papel da utopia e sobre a importância de não deixarmos de caminhar.
No fim de contas, Irene também poderia ser simbolicamente a história do processo de montagem deste exercício teatral; da forma como nos encontrámos e comprometemos, de como nos entregámos, de como duvidámos e de como convocámos o prazer de estarmos juntos no trabalho. No palco, todos somos Irenes. Completamo-nos uns aos outros e caminhamos no encalço desse desconhecido que nos chama, porque, enquanto assim o fizermos, não estaremos sozinhos.
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João Santos
Coordenação Classes de Teatro: Isabel Craveiro
Autora: Djaimilia Pereira de Almeida
Coordenação: João Santos
Elenco: Anaís Oliveira, João Duarte, Madalena Fernandes, Mª Inês Ferreira, Maria Apóstolo, Mariamar Almeida, Mariana Matos, Sofia Rosado, Sofia Rosa, Verónica Simões.
Luz: Jonathan Azevedo
Som: Nuno Pompeu
Produção Teatrão 2023
Este projeto integra a Odisseia Nacional e é apresentado no âmbito do PANOS – palcos novos palavras novas. Uma iniciativa do Teatro Nacional
D. Maria II, do BPI e da Fundação “la Caixa”.
Agradecimentos: AVEIClean.